Eu não sou diferente... Os outros é que são muito iguais.

20061114

I

E, de súbito, levantou os olhos e viu a sua silhueta reflectida no preto das pupilas da sua avó. “Maria do Carmo,” soou a voz ríspida mas harmoniosa da geração duas vezes acima de si. “Quantas vezes preciso dizer à menina que uma senhora não rói as unhas?!”
Desperta do seu sonho acordado, as palavras da avó soaram longe. Teimosamente os seus pensamentos mantiveram-se afastados do quadro familiar e, uma vez mais, interrogou-se sobre quem ainda usaria o cabelo apanhado numa banana. Só se lembrava de uma figura pública que o fazia. Agustina Bessa Luís. Sim, era verdade, senhora de trato e classe idênticos aos da sua avó, provavelmente de idade análoga.
À sua frente, o corpo alto mas elegante da avó erguia-se como uma majestosa e sapiencial pirâmide, de braços ligeiramente cruzados, não demais - pois uma senhora não cruza os braços - mas o suficiente para comunicar o seu desagrado e reforçar o seu comentário repreensivo numa atitude coordenada. Os olhos azuis faiscavam-lhe. “E que peça de vestuário é essa? A menina parece um comboio fora da estação! Estamos em Novembro, deve usar roupa adequada. Aceito que não queira pôr uma meia de seda ou uma qualquer meia, mas francamente!”
A pouco e pouco, começou a descer da névoa que ainda a rodeava, bruma invisível e imaterial, subproduto da elevação onírica para a qual inconscientemente deslizara antes da chamada à terra decorrente das palavras da avó. Major Tom to ground control. “Mas Avó Rosarinho,” toda a gente tratava a matriarca da família pelo diminutivo, “estamos no verão de São Martinho.” A avó deu dois passos para a esquerda dirigindo-se à escrivaninha, verdadeira antiguidade, onde guardava os seus caderninhos de apontamentos. Antes de parar à frente do móvel, desviou-se um pouco e fechou as cortinas de organza branca, ainda ponderou se deveria puxar os pesados reposteiros, mas dois, no máximo três segundos depois, largou o puxador e manteve-os abertos. “Mas que coisa ignóbil, esparramada no meio do soalho!” continuou asperamente. “Mas Avó Rosarinho,” repetiu a jovem, “estou a aproveitar o resto do calor do sol…”
A vetusta senhora ainda olhou para trás antes de abandonar a sala, mas rapida e firmemente fechou as portas à sua saída.

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