Eu não sou diferente... Os outros é que são muito iguais.

20070825

Intelectual público

Faleceu Eduardo Prado Coelho.

free music
Chavela
Eduardo Prado Coelho - O Fio do Horizonte
(in: Jornal Público de 19/09/06)

«Foi numa noite de chuva copiosa. Chovia tanto que decidi parar o carro - porque não via nada à minha frente. E abri o rádio do carro. Foi então que ouvi uma voz rasgada, pedregosa, roufenha, mas intensíssima, como se a vida toda tivesse passado através dela, e disso resultasse esta música de melodrama, de separações com amantes, de dores nocturnas, de madrugadas cinzentas.
Esperei para que no final dissessem o nome de quem cantava. E disseram: Chavela Vargas. No dia seguinte, lancei-me à procura de todos os discos dela e trouxe-os todos para casa. Aqui em Portugal não se conhecia o nome (já se conhece?). Apesar de Almodóvar a adorar e tê-la feito entrar num dos seus filmes.
Sabia que tinha abandonado os espectáculos. Tem hoje 87 anos. Eu julgava que ela nascera no México. Mas não, foi na Costa Rica. Aos 14 anos, depois de uma infância extremamente dura, vendeu duas vacas e foi para o México. Onde ficou 70 anos. A entrevista que concede a uma revista espanhola mostra como hoje se sente feliz e pacificada. Um rosto admirável, que continua admirável. E que vida!
No México conviveu com amigos como Frida Kahlo, Diego Rivera, Guadalupe Amor ou Dolores del Rio. Ela diz-nos, contudo, que quando a infância foi marcada pela ausência de ternura, o resto da vida essa ausência perdura. Chavela é algo céptica em relação aos casais que vivem juntos. "A convivência acaba com tudo, é muito dura." E a solidão acentua-se na relação.
Chavela recorre ao álcool e transforma-se numa verdadeira alcoólica. De tal modo que caiu na grande abjecção. Tinha então 50 anos. Até que um dia, sentindo-se morrer com a ressaca, disse para si mesma: "Ou me recomponho ou me suicido." Mas acrescentou: "Vou sair." E saiu daquele inferno... Depois, foi operada ao cérebro, mas aí achou que seria uma morte muito tranquila e feliz. Porque a morte por cirrose é horrível. E a vida de Chavela nunca foi fácil. Nasceu cega, teve polio, etc.
Hoje Chavela sente-se bem. E nós gostamos de ver falar assim uma mulher de 87 anos. Afirma: "Estou saudável e com o espírito lúcido." E acrescenta: "O medo não existe, somos nós que o inventamos. Eu não tenho medo de nada nem ninguém. Muito menos da morte." Ela diz que canta, mas canta "de verdade" e com a sua música tem ajudado a curar muitas pessoas.
Depois de lermos esta entrevista, ficamos com enorme admiração por esta mulher que se reconstruiu a pulso. E quando ouvirmos os seus discos vamos certamente ouvi-los de outra maneira.»
Tinha 63 anos. Professor, ensaísta e escritor. Colaborador do Público, onde mantinha uma coluna de segunda a sexta-feira, O Fio do Horizonte, e uma crónica semanal sobre literatura. Polémico e prolífico pensador. A sua derradeira crónica será publicada amanhã na edição de domingo.

Brevíssima biografia.

Foi e será sempre uma referência para as Letras portuguesas.

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